No domingo (13) à tarde, uma fila se estendia pelo pilotis da PUC-Rio. O motivo era a sessão de autógrafos do livro da jornalista mineira Daniela Arbex, “O Holocausto Brasileiro”, em meio à Conferência Global de Jornalismo Investigativo. Na obra, a autora resgatou os horrores do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, responsável pela morte de mais de 60 mil pessoas.
Inaugurado em 1903, o maior hospício do Brasil recebia, em condições desumanas, pessoas sem sintomas de loucura ou insanidade. Repórter do jornal Tribuna de Minas, Daniela descobriu o caso em 2009, folheando um livro que continha parte de fotos do interior do hospício feitas pelo fotógrafo Luiz Alfredo, da revista “O Cruzeiro”, em 1961. Semelhantes aos campos de concentração nazista, as imagens causaram indignação na jornalista que publicou uma série de reportagens em 2011 com os sobreviventes da tragédia. Pelo trabalho, venceu o Prêmio Esso Regional Centro-Oeste em 2012.
No ano passado, resolveu aprofundar o trabalho em uma nova linguagem. Durante um ano, viajou para entrevistar pessoalmente as vítimas. A autora afirma que gastou do próprio bolso R$10 mil na apuração do livro e critica a conivência do Estado, dos funcionários do hospício e da sociedade brasileira. Até hoje, ninguém foi punido pelas atrocidades.
Quanto tempo durou a investigação?
O livro não aproveita nada da série de reportagens. É uma outra história, uma outra linguagem. Eu me aprofundei muito mais, encontrei novos sobreviventes. Para a série de reportagens, fiquei um mês, que é o mínimo, e a gente publicou sete matérias. Para o livro, eu levei um ano de investigação. É a primeira vez que essa história é contada pelo olhar dos sobreviventes, pois ela sempre foi contada pelo olhar dos jornalistas. É a primeira vez que os sobreviventes tiveram voz. Esse é o ineditismo do trabalho.
Como foi conciliar a apuração do livro com o trabalho na redação?
Não foi fácil, porque eu precisava e preciso do meu salário, tinha que continuar produzindo as matérias especiais e, em todos os finais de semana, durante um ano, me dediquei ao projeto. Então, fiz o que podia. Estive pessoalmente com todas as pessoas. Foi um outro olhar, um outro tipo de encontro. Gastei R$10 mil do meu bolso para apurar. Foi um investimento meu de acreditar. Eu apostava muito na história. Para escrever, passei, todas as madrugadas, durante cinco meses. Chegava em casa às 23 horas, cuidava do meu filho, ia lanchar e começava a escrever. Dormia às 4 ou 5 horas da manhã, até as 8 horas, e ia trabalhar.
De todas as atrocidades, qual foi a mais chocante?
Eu acho que todas as histórias são dramáticas, mas a história do bombeiro João Bosco é incrível. Ele foi arrancado da mãe ao nascer. A mãe foi estuprada pelo patrão, não tinha nada. Foi mandada para Colônia para esconder a gravidez. Eles passaram a vida inteira sem saber um do outro. Ele achando que não era amado, que ele foi esquecido, e ela sem saber como enterrar um filho vivo. A história dos dois é fantástica, muito comovente. Ele é um grande homem também. Como ele superou isso tudo é incrível.
Por que essa história ficou tanto tempo esquecida?
O que sustentou esse modelo, durante oito décadas, foi a teoria higienista. O Guimarães Rosa fala “para os pobres, os lugares são mais longe”, mas essa teoria de limpeza social continua existindo. Continuam acreditando que existem vidas que valem menos. Então, essas histórias ficaram encobertas. Quando foram reveladas em 1961, com o Cruzeiro, e em 1979, com o Iran Firmino, do Estado de Minas, as pessoas viraram a página, não se importaram. Mas agora elas não vão poder continuar fingindo que não veem. Elas só não vão ver se não quiserem, mas está escancarando para todo mundo ver o que nós somos capazes de fazer.
Como você enxerga as mazelas do sistema público de saúde de hoje?
O holocausto não acabou. A gente ainda vive essas atrocidades, a gente ainda é indiferente e permite que esses extermínios aconteçam. Isso, infelizmente, é uma grande realidade. A indiferença gera a barbárie. Enquanto a dor do outro não nos tocar, as barbáries vão continuar acontecendo. Acho que o papel do jornalista é fundamental para mudar essa realidade. A gente não pode se acomodar, tem muito a ser feito. A internação compulsória está só começando, ela ganha agora uma nova dimensão. Essa questão precisa ser discutida. Será que a sociedade sabe para onde estamos caminhando? Eu receio que a gente esteja caminhando para um passado de barbárie.
Texto: Guilherme Ramalho (3º ano, ECO/UFRJ)