“Sem o movimento essencial do repórter não é possível fazer nenhuma reportagem”. Essa foi a expressão destacada por Eliane Brum ao longo de toda a sua palestra. Movimento que, para ela, significa a sensibilidade do olhar, de ver o outro e de se colocar no mundo e na vida que o rodeia. A palestra da jornalista, escritora e documentarista dividiu-se em mais duas partes além do movimento essencial: os principais estereótipos ligados à cobertura sobre a Amazônia e a construção da memória oral em contraposição à escrita.
“A nossa força como repórter é justamente a consciência pela fragilidade da nossa posição”, disse, destacando em sua fala, mansa e convicta, que é possível notar a paixão e o zelo pela reportagem, bem como sua sensibilidade ao captar as nuances dessa profissão tão singular e das histórias que testemunha.
Durante cerca de duas horas, Brum indicou caminhos e possibilidades para todos aqueles que se propõem a reportar os fatos de uma outra forma. Como costuma fazer em suas palestras, Brum leu – ou melhor, recitou – para um auditório lotado ferramentas cruciais à prática do repórter, e ressaltou a responsabilidade diante das histórias que nos propomos a contar.
O olhar humilde, mas longe de ser imparcial, seria uma das ferramentas para evitar o que ela chama de anti-jornalismo. No caso das matérias da Amazônia especificamente, a disseminação de estereótipos e reprodução dos discursos hegemônicos nas zonas de conflito de interesses exemplificariam isso. De um lado, grandes fazendeiros, mineradoras, capital estrangeiro e o Estado; do outro, índios, garimpeiros, seringueiros, ribeirinhos, quilombolas e até prostitutas.
Brum optou pelo segundo. Em suas inúmeras incursões pela Amazônia (cerca de dez grandes reportagens), a jornalista se deparou com a vida e o cotidiano de pessoas – ela não usa a palavra personagens – que nos acostumamos a enxergar através de estereótipos e preconceitos disseminados por parte da mídia.
“Quando colaboramos para cimentar um olhar sobre a história fazemos o contrário da reportagem. O que é preciso perceber é que esse olhar que produz e reproduz estereótipos não é inocente. Esse olhar é uma violência e, no caso dos povos da floresta, é mais uma violência cometida contra eles, e tem graves consequências.”, aponta.
Parte do registro dessas viagens se encontra nos livros “O olho da rua – Uma repórter em busca da literatura da vida real” e “A menina quebrada e outras colunas de Eliane Brum”, dos quais citou trechos ao longo da palestra.
Durante suas investidas nesse território, pouco conhecido ou mal conhecido pela maioria dos brasileiros, ela rompeu o véu que deturpa a imagem de indígenas como “bons selvagens”, de garimpeiros como “criminosos” e de prostitutas como “vítimas”. E, segundo ela, é preciso ter bons ouvidos e olhar sensível para perceber que há ‘putas’ e ‘putas’. “Ser prostituta na Vila Mimosa, não é o mesmo que ser na Amazônia”, exemplifica.
Imprimir estereótipos, criminalizar atividades e omitir histórias em virtude de sua carga moral são maneiras de desqualificar a luta e resistência desses povos ou, como a própria jornalista observa, “a forma mais eficiente de calar o outro é transformá-lo numa ameaça”. Exemplo disso é o que faz atualmente grande parte da mídia referindo-se aos ataques a patrimônios públicos e privados durante os recentes protestos por parte de determinados grupos.
Todavia, há ainda outro ponto crucial, que Brum destacou como o mais importante da palestra e que contribui significativamente para a manutenção desses povos à margem da sociedade: a oralidade. A narrativa e difusão de conhecimento dessas pessoas, segundo ela, se dá majoritariamente através da palavra oral, característica desvalorizada como registro histórico em nossa sociedade.
Existe um alto índice de analfabetismo, a maioria não possui documentos e a cultura oral é característica arraigada no modo de vida local. Assim, a escrita torna-se mais uma ferramenta de dominação, de perpetuação de poder e expulsão desses povos. “Como eles podem provar que a terra lhes pertence, se não possuem documentação?”, indaga.
E é justamente nestes momentos, segundo ela, que o repórter pode desempenhar seu papel fundamental de mediador, ou seja, uma ponte entre os esquecidos e a sociedade. Compreender a importância e as barreiras desse ofício é um passo importante para identificar o papel do repórter nas narrativas de conflito. “Somos nós que podemos, ao documentar a história em movimento, transformar documento oral em documento escrito, funcionar como ponte entre mundos. Mas para isso é preciso fazer o movimento essencial do repórter”. Ou seja, ouvir.
Escritora por excelência e repórter por natureza, Brum escolheu mergulhar nas histórias extraordinárias que se camuflam atrás de “vidas comuns”. Atualmente, a jornalista despede-se da revista Época, onde atuou por dez anos como repórter e posteriormente como colunista. Ela diz que pretende manter seus trabalhos de forma independente e através de outros recursos, como financiamento coletivo. Ao concluir sua fala, salientou os riscos de um exercício irresponsável da profissão e o primeiro movimento essencial para deixar a condição de reprodutor de discursos para se tornar um repórter de fato: “ser repórter nada mais é que mover-se sobre dúvidas. É preciso saber ouvir”, ressalta.
Texto: Alan Miranda (4° ano, ECO/UFRRJ)
Foto: Guilherme Ramalho (3º ano ECO/UFRJ)
Serviço:
Amazônia e Memória
Com Eliane Brum (Independente)
Segunda, 12 de outubro de 2013 – 16:00